Animes
Princesa Mononoke: coexistindo em tempos de polarização
Aprofundando-se nas nuances da complexidade humana e na busca pela coexistência, Hayao Miyazaki, Ashitaka e San ainda têm muito a nos ensinar, mesmo após 28 anos.

Princesa Mononoke: coexistindo em tempos de polarização
Na última segunda-feira de agosto (25/08), fui ao cinema prestigiar o relançamento de Princesa Mononoke, um dos maiores clássicos do queridíssimo Studio Ghibli, exibido na única sala IMAX de Fortaleza.
Ao entrar na sessão (um pouco atrasado, mas exatamente no minuto em que a projeção começou), algo me chamou atenção: a sala, conhecida por sua tela gigantesca, com capacidade para 424 pessoas, estava completamente lotada.
Assisti ao longa pela primeira vez no ano passado (2024) e fiquei deslumbrado já no primeiro contato. Estava em uma maratona dos filmes do Ghibli, e Mononoke era um dos que eu mais queria ver, tanto pelo que já tinha ouvido falar quanto pelo pôster instigante que sempre chamava minha atenção. Quando enfim me sentei na sala da casa da minha irmã para assistir (com uma tv excelente e uma caixa de som sinistra que simula uma som de cinema), logo nos primeiros minutos fiquei surpreso: era, visualmente, a obra mais “adulta” do estúdio. Em uma das primeiras cenas, o protagonista Ashitaka dispara uma flecha que arranca os membros de guerreiros que o atacavam. O choque foi imediato, afinal, eu não tinha visto esse nível de violência em nenhuma das outras produções do Ghibli.
Mas isso não é, nem de longe, o que faz de Princesa Mononoke uma obra madura. O sangue e os decepamentos são apenas detalhes dentro de uma das narrativas mais densas que já encontrei em animações.
Então, o que levaria um filme animado de quase três décadas a lotar uma sala de cinema em 2025?
Vou fugir aqui de resumos detalhados ou análises completas da trama (que, por si só, renderia outro texto) e focar em momentos específicos que me trouxeram uma necessidade de falar sobre para fazer algumas reflexões.
Imagem utilizada no pôster de relançamento de Princesa Mononoke, destacando San, a deusa loba Moro e os Kodamas — pequenos espíritos que refletem a vitalidade e o equilíbrio da floresta.
Natureza, humanidade e a fuga do maniqueísmo
Além de toda a produção técnica impecável e deslumbrante em cada um dos 134 minutos de filme, duas coisas me chamam atenção em Mononoke: o tema central da trama — essencialmente sobre ambientalismo e coexistência — e a construção de seus personagens.
San (a personagem que dá nome à obra, mesmo que seu nome não seja ‘Mononoke’) é uma humana criada por lobos, filha adotiva de Moro, a Deusa Loba da floresta. Ela foi abandonada pela família biológica e criada na natureza desde sempre, por isso, não se reconhece como humana. Em sua visão, os homens são cruéis, mesquinhos e egoístas, uma ameaça constante para sua casa. Para San, sua verdadeira identidade está na própria floresta e em toda a sua complexidade, das árvores às entidades místicas que a habitam. Não por acaso, o título original Mononoke Hime (Princesa Mononoke) significa literalmente ‘Princesa dos espíritos vingativos’, já que mononoke é um termo do japonês antigo usado para designar espíritos, espectros ou forças sobrenaturais capazes de amaldiçoar os humanos – e é exatamente assim que San é vista pelas pessoas, justamente por agir como uma verdadeira fera para proteger o seu lar, tendo como principal objetivo a destruição da Cidade do Ferro, construída pela imponente Lady Eboshi, que explora sem limites os recursos naturais para erguer sua fortaleza e produzir armas.
Em contrapartida, voltamos ao Ashitaka (o verdadeiro protagonista, mesmo que muita gente não fale dele). Um jovem príncipe de uma pequena aldeia, destemido, bondoso e astuto, que assume o papel de mediador. Após ser amaldiçoado ao enfrentar Nago, um deus-javali corrompido pela dor e pelo ódio depois de ser atingido por uma bala de ferro, Ashitaka parte em jornada para buscar a cura. A origem da maldição? A bala de ferro que veio Justamente da Cidade do Ferro de Eboshi.
É nessa caminhada, ao lado de seu fiel alce Yakkul, que Ashitaka, posteriormente, cruza caminhos com San e se afeiçoa a ela. Antes, porém, ele também conhece Lady Eboshi, que convida Ashitaka para conhecer sua fortaleza. E é aí que a animação brilha ainda mais forte, entregando o segundo ponto que a torna tão singular: a fuga da dicotomia tradicional, ao apresentar personagens complexos e contraditórios, que transitam entre gestos nobres e atitudes condenáveis.
O protagonista Ashitaka, acompanhado de seu fiel alce Yakkul, enfrenta a maldição que corrompeu o Deus Javali Nago.
À primeira vista, a Cidade do Ferro parece um reduto opressor, como o covil de um dos vilões da Disney. Mas, ao entrarmos, descobrimos algo mais complexo. Sim, tanto nós ~ telespectadores ~ quanto Ashitaka. Lady Eboshi, que devasta a natureza sem hesitar, oferece um lar seguro para mulheres que a mesma resgatou da prostituição, lhes proporcionando trabalhos, comida, respeito e papéis de liderança, além de leprosos rejeitados pela sociedade, sendo a própria Eboshi a lhes dar comida e trocar seus curativos.
É essa ambiguidade que torna Princesa Mononoke uma história tão singular. Eboshi destrói a floresta, mas acolhe os marginalizados e é venerada por todos, homens e mulheres, em seu lar. San ama a floresta, mas não hesita em matar humanos para defendê-la. O Shishigami, o Deus-Cervo, Espírito da Floresta que encarna vida e morte, é ao mesmo tempo sereno e assustador — capaz de dar a vida e de tirá-la. Sua aparência é sinistra e intrigante, capaz de trazer um certo desconforto, e ao mesmo tempo uma aura realmente divina. Shishigami é um dos personagens mais enigmáticos da obra, sendo adorado e respeitado por alguns animais e humanos, como Ashitaka, San, Moro e os outros deuses lobos, além do clã dos Javalis, que embora o reverenciem, também demonstram dúvidas e ressentimento em certo momento. Por outro lado, Shishigami também é visto como ameaça por parte dos humanos, sendo o principal alvo da Lady Eboshi, que acredita obter poderes divinos ao arrancar a cabeça do Deus-Cervo.
Essa recusa em pintar personagens apenas de branco ou preto é uma das maiores forças do filme. Hayo Miyazaki, diretor do filme e um dos criadores do Studio Ghibli, nos lembra que ninguém ali é raso ou unidimensional, que todos têm camadas e densidade, trazendo uma complexidade diferente de tudo que eu estava acostumado a ver em animações, principalmente nas ocidentais.
Me deparar com essas nuances e perspectivas diferentes me faz refletir muito sobre o que podemos aprender com Princesa Mononoke hoje, 28 anos após o seu lançamento original, que ocorreu no 12 de julho de 1997, no Japão.
A astuciosa Lady Eboshi é, sem dúvida, uma das personagens mais complexas da história.
Polarização política, ambientalismo e a dificuldade de coexistir
De uns anos para cá, adquiri um hobby meio mórbido de observar o comportamento dos usuários nas redes sociais. Em qualquer momento do feed infinito que nos escraviza, basta abrir uma aba de comentários sobre absolutamente qualquer assunto para ver o pior da humanidade emergir. Talvez por pensarem que a internet é “terra sem lei”, muitos se sentem à vontade para expor ódios e preconceitos que jamais manifestariam pessoalmente.
E isso não é apenas impressão pessoal e individual. Segundo um levantamento feito em 2023 pela ONG SaferNet, denúncias de crimes envolvendo discurso de ódio nas redes sociais triplicaram nos últimos seis anos, tendo como principal alvo as mulheres. Não à toa, vimos, nos últimos meses, campanhas de difamação e linchamento virtual contra atrizes como Rachel Zegler e Bella Ramsey, repletas de misoginia, racismo e xenofobia.
É inegável que a polarização política tem sido combustível para esse maniqueísmo desenfreado. Nos últimos dez anos, ela vem crescendo de forma avassaladora.
Dentre centenas de milhares de casos repudiáveis e revoltantes, um que nunca saiu da minha cabeça mais foi o assassinato de Marcelo Arruda, guarda municipal covardemente assassinado em 2022, durante sua festa de aniversário de 50 anos, quando Jorge Guaranho, agente penitenciário bolsonarista e covarde, atirou contra ele a queima-roupa. Marcelo era petista e comemorava com uma festa temática do presidente Lula. Uma vida foi ceifada porque alguém não aceitava a existência do contraditório.
Há discursos e posicionamentos políticos que simplesmente não cabem em debate: preconceitos, homofobia, racismo, negacionismo científico, discursos anticiência, dentre outros. Nesses casos, não há nuance possível, apenas repúdio imediato.
Voltando a um dos temas centrais de Princesa Mononoke — o ambientalismo —, O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou um aumento de 91% no desmatamento da Amazônia em maio de 2025. Foram 960 km² de floresta derrubada apenas nesse mês, o segundo pior da série histórica para o período, contra 502 km² registrados em maio de 2024. “Atualmente, o desmatamento e a agropecuária estão entre as principais causas do efeito estufa no Brasil”, afirma Ana Carolina Crisostomo, especialista em conservação do Fundo Mundial para a Natureza Brasil (WWF-Brasil), em entrevista à CNN.
Essa realidade não se restringe ao Brasil. A perda de biodiversidade é uma preocupação global, já que incêndios florestais e queimadas vêm se tornando cada vez mais frequentes e intensos, resultado tanto de atividades ilegais conduzidas por humanos quanto do agravamento das mudanças climáticas, que ampliam a propagação e a força do fogo.
Enquanto isso, discursos negacionistas, muitas vezes recheados de fake news e propagados por políticos e empresários que se beneficiam do desmatamento, têm deixado parte da população desconfiada sempre que o tema vem à tona. Para muitos, falar sobre ambientalismo e mudanças climáticas passa a ser visto como um “plano de fundo” para algo pior — percepção que se reflete, por exemplo, nos ataques constantes à ativista Greta Thunberg, frequentemente vilipendiada por suas posições em defesa do planeta.
De um lado, estão Greta e centenas de milhares de ativistas atuando em diferentes frentes. No Brasil, nomes como Marina Silva, atual Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, e Gabriel Biologia, vereador de Fortaleza que se destaca na luta contra crimes ambientais, somam forças nessa batalha. De outro, vemos um Congresso que, em contrapartida, discute a implementação do PL 2159 — também conhecido como “PL da Devastação” —, que ameaça restringir medidas de controle e prevenção da poluição atmosférica e do desmatamento.
Mais uma vez, a polarização política exerce forte influência: muitas pessoas rejeitam essas pautas não pelo conteúdo das mensagens, mas pela repulsa ideológica aos emissores. A ausência de regulamentação efetiva das redes sociais agrava esse quadro, permitindo a difusão desenfreada de mentiras sobre o tema, sem mecanismos sólidos de checagem e responsabilização.
Os intrigantes Kodamas, pequenos espíritos da floresta, sinalizam que a natureza está em equilíbrio e saudável.
Mas, eu, como jornalista e estudante das formas de comunicação, percebo que, fora desses extremos citados, uma grande parcela das pessoas está apenas… desinformada. E é nesse campo que a comunicação e o diálogo são fundamentais.
Hayao Miyazaki, em entrevista, resumiu isso de forma brilhante:
“Muitas vezes, aqueles que estão destruindo a natureza, na verdade, são pessoas de bom caráter. Pessoas que não são más tomam ações cuidadosas, pensando que agem para o bem, mas os resultados podem gerar problemas terríveis.”
Essa reflexão não vale apenas para quem rejeita o ambientalismo, mas também para aqueles que acreditam em teorias conspiratórias, em movimentos antivacina, na suposta “ideologia de gênero implementada nas escolas” ou no “fantasma do comunismo” que estaria prestes a tomar suas casas, todos exemplos de narrativas políticas fabricadas para fomentar ódio e alimentar o pânico moral.
Muitos de nós (eu incluso) temos pessoas queridas, de bom coração e bem-intencionadas, mas que acabam sendo contaminadas por ideologias ardilosas, criadas unicamente para beneficiar um pequeno grupo de pessoas. Longe dos extremos (aqueles que agem de má-fé conscientemente, movidos apenas por egoísmo e por sadismo), existe sempre a possibilidade de mudança por meio do diálogo e do esclarecimento. É esse o caminho que Ashitaka tenta seguir ao mediar conflitos entre o povo da Cidade do Ferro e os clãs animais da floresta, ambos movidos pelo ódio às ações humanas. Comunicação, afinal, é a ponte para a coexistência.
San é Hardcore, Ashitaka é Punk Rock! (e o contrário também)
Quando assisti ao filme pela primeira vez, achei Ashitaka ingênuo demais, a ponto de me deixar meio incrédulo. Reassistindo agora, com uma outra perspectiva, fiquei surpreso ao enxergar nele não ingenuidade, mas coragem, astúcia e, acima de tudo, maturidade. Acho que um dos motivos dessa visão enviesada tem nome: o Superman de James Gunn, lançado em julho desse ano. Como eu disse neste texto aqui, essa nova versão do Superman me ajudou a resgatar e preservar essa visão otimista, e acho que essa chama de esperança me ajudou a enxergar Ashitaka de forma diferente. Ele é, de certa forma, puro punk rock. Quem viu Superman, sabe do que estou falando.
Ver o mundo pelos olhos de Ashitaka não é romantizar a vida. Ele e San sabem que o mundo é cruel, que a violência existe e que as pessoas podem ser más. Mas, ainda assim, eles escolhem preservar não só a natureza, mas também a ideia de coexistir, mesmo com todas as diferenças que existem entres eles e os humanos que vivem por ali. San, extremamente honesta e fiel em relação aos seus sentimentos, ao final do filme, diz para Ashitaka que o ama, mas que jamais perdoará os humanos e que continuará vivendo na floresta, que está em um novo ciclo após os acontecimentos do filme. Transformação.
Ashitaka não questiona, pelo contrário, assente. Ele é otimista e confiante. Ambos concordam em se encontrar esporadicamente. Coexistência.
Eles aceitam as escolhas um do outro e tentam, juntos, proteger aquilo que prezam, inclusive um ao outro, porque, ((QUASE)) sempre, existe uma chance de mudança, uma luz para um mundo tão sombrio.
San, junto aos lobos Kōroku e Toki, se despede temporariamente de Ashitaka e Yakkul, encontrando uma forma de coexistir.
É isso que precisamos resgatar: o diálogo, a mediação, a nuance, a complexidade e humanidade. Não preto e branco, não oito ou oitenta. Princesa Mononoke nos diz isso desde em 1997, e nós nunca precisamos tanto ouvir esses personagens como estamos precisando agora.